10/05/2024
16/02/2024
A Voz Perdida dos Homens
- Vejo pistas sobre o macadame e uma ex-putinha que ama um homem das sombras. Ela pensa que amar é uma alquimia do coração e do corpo com um deserto infinito a preencher de odores e de cores, de palavras trocadas ao mesmo tempo que os gestos, dias tórridos e noites geladas, agachar-se, detectar as miragens e correr ao encontro delas para as encher de realidade. Vejo ainda duas vidas perdidas na vastidão, separadas por anos-luz de areia e que se percutem pelo maior dos acasos, atraídas como as bússolas e o Grande Norte, a agulha e o pólo das pessoas mortificadas que acham juntas o ponto que reluz. Deste lugar impossível nascem os possíveis – a nossa bela catástrofe –, um homem e uma mulher, como sempre, o mais improvável dos encontros.
Microprocessadores de silício
Substituirão um dia a memória dos homens.
Jamais te olvidarei…
Yves Simon - "A Voz Perdida dos Homens" - 2001
27/01/2024
17/12/2023
Contos
“Depois da noite em que perdera todos os seus bens na banca do cavaleiro, não voltara a tocar numa carta, mas, nos últimos momentos da sua vida, o jogo voltou a dominar-lhe a vontade. Enquanto o sacerdote, a seu lado, lhe ministrava a extrema-unção, preparando-o para a passagem deste mundo para o outro, dando-lhe o conforto da Igreja, falando-lhe de coisas espirituais, ele, na cama, de olhos abertos, murmurava entre dentes: “Perde…, ganha…”. Ao mesmo tempo, fazia com as mãos os movimentos de quem baralha e dá as cartas. Era em vão que Ângela e o cavaleiro se inclinavam sobre o leito, procurando acarinhá-lo. Não os reconhecia e, quando acabou por entregar a alma ao Criador, ainda repetia: “Perde…, ganha…”
E.T.A.Hoffman – “Contos” – 1812
25/11/2023
15/10/2023
Limonov
"Limonov não é um personagem de ficção. Ele existe. Eu conheço-o. Foi um marginal na Ucrânia; ídolo do underground soviético na era Brejnev; sem-abrigo e depois mordomo de um milionário em Manhattan; escritor de vanguarda em Paris; soldado perdido nas guerras dos Balcãs; e agora, no imenso caos do pós-comunismo na Rússia, velho chefe carismático de um partido de jovens em fúria. Vê-se a si próprio como um herói, mas podemos considerá-lo um bandido: por mim, deixo o julgamento em suspenso. É uma vida perigosa, ambígua: um verdadeiro romance de aventuras. É também, creio, uma vida que conta qualquer coisa. Não apenas sobre ele, Limonov, não apenas sobre a Rússia, mas sobre a história de todos nós depois do fim da Segunda Guerra Mundial."
Emmanuel Carrère - "Limonov" - 2011
07/08/2023
28/07/2023
Mendigos e Altivos
"O burburinho das vozes e a claridade dos candeeiros de
acetilene acolheram-no, qual refúgio benfazejo. A esta hora da noite, o Café
dos Espelhos ficava cheio de uma malta turbulenta que enchia as mesas todas e
deambulava em lenta procissão pela rua de terra batida. Da incessante telefonia
saltava, vagas duma música tempestuosa, a qual, amplificada pelos altifalantes,
afogava numa mesma confusão a magnificência das conversas, dos gritos e dos
risos. Neste tumulto grandioso, dedicavam-se a uma espécie de actividade
divertida mendigos andrajosos, cata-beatas, vendedores ambulantes, quais
saltimbancos em feira ruidosa. E todas as noites assim era, ali surgindo aquele
ambiente de arraial. O Café dos Espelhos parecia ser um lugar criado pela
sabedoria dos homens e situado nos confins de um mundo consagrado à tristeza."
Albert Cossery -"Mendigos e Altivos" - 1955
Albert Cossery -"Mendigos e Altivos" - 1955
14/05/2023
30/04/2023
Fantasmas da Minha Vida
"São os irreabilitados, uma
geração perdida, «sempre a suspirar pelo tempo que acabou de nos fugir»: os que
nasceram demasiado tarde para o punk, mas
cujas expectativas foram elevadas pelo seu incendiário crepúsculo; os que assistiram
à Greve dos Mineiros com olhos adolescentes e apoiantes, mas que eram
demasiado novos para participarem efectivamente na militância; os que sentiram
a euforia desejosa de futuro da rave como
um direito natural, sem sonharem que
ela poderia esfumar-se como sinapses fritas; os que, em suma, simplesmente não
achavam suportável a «realidade» imposta pelas forças conquistadoras do
neoliberalismo. A regra é adaptar-se ou morrer, estando muitas formas
diferentes de morte à disposição de quem não conseguir apanhar o alvoroço
comercial ou puxar do entusiasmo indispensável para as indústrias criativas. Seis
milhões de maneiras de morrer, é só escolher uma: drogas, depressão,
indigência, tantas formas de colapso catatónico. Noutros tempos, os
«pervertidos, psicóticos e os que se iam mentalmente abaixo» inspiravam
poetas-militantes, situacionistas, sonhadores da rave. Agora, são encarcerados
em hospitais, ou ficam a definhar na sarjeta."
Mark Fisher - "Fantasmas da Minha Vida - Escritos sobre Depressão, Hantologia e Futuros Perdidos" - 2014
Etiquetas:
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08/02/2023
28/01/2023
Fogo Grande
“Esperei por Sílvia todo aquele dia
e, como sempre, passei pelos estados de alma que já conhecia do tempo em que
estive sozinho e a procurava por toda a parte. Agora, porém, Sílvia estava
realmente, por todo o lado, e passei o dia muito mais perto dela. A casa, o pátio
e o campo continham uma Sílvia imutável e antiga, em que podia pensar sem
ansiedade nem doçura. Bastava-me sentir e absorver quanto era grande, diferente
e familiar aquela realidade em que ela nascera e à qual, embora debatendo-se
até porque se debatia consigo própria, acabava por pertencer cada vez mais.
Poder dispensá-la, pois chegara a tocar qualquer coisa do mais profundo da sua
presença, libertava-me e saciava-me.”
Cesare Pavese & Bianca Garufi – “Fogo Grande” - 1959
11/01/2023
18/12/2022
A Queda
"Nessas noites, antes, nessas
manhãs, pois a queda produz-se ao romper da alva, eu saio e parto, numa marcha
impetuosa, ao longo dos canais. No céu lívido as camadas de penas adelgaçam-se,
as pombas sobem um pouco, uma claridade rósea anuncia, ao nível dos telhados,
um novo dia da minha criação. No Damrak, o primeiro elétrico faz tinir a sua
campainha no ar húmido e toca a alvorada da vida nesta extremidade desta
Europa, onde, no momento, centenas de milhões de homens, meus súbditos, se
arrastam penosamente da cama, com a boca amarga, a fim de irem para o trabalho
sem alegria. Então, pairando em pensamento por cima de todo este continente que
me está submetido sem o saber, bebendo a luz de absinto que sobe, ébrio enfim
de ruins palavras, sinto-me feliz, sinto-me feliz, proíbo-o de não acreditar
que me sinto feliz, que morro de felicidade!
Oh, sol, praias, ilhas sob os alísios, juventude cuja lembrança desespera!"
Oh, sol, praias, ilhas sob os alísios, juventude cuja lembrança desespera!"
Albert Camus - "A Queda" - 1956
10/11/2022
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